De tempos a tempos aparecem no mercado de antiguidades peças tais como este escritório de tampo de abater, do Guzarate, com requintado trabalho de embutidos de madrepérola em laca preta, que independentemente da sua beleza, valor comercial e raridade óbvios, ajudam a deslindar algumas das dúvidas acumuladas e que são uma bênção para os estudiosos e interessados em determinada área da produção das artes decorativas.
Não há informação fundamentada sobre a origem desta indústria de embutidos em madrepérola na Índia. Há notícia de obras de embutidos de madrepérola a partir do séc XV. Babur o primeiro Imperador Mogol (avô de Akbar) conta nas suas memórias, o Babur–nama, em passagem referente a Setembro de 1529, quando em campanha no Norte da Índia, ter enviado vários presentes para o seu filho Hindal em Kabul, nomeadamente um tinteiro embutido e um banco trabalhado em madrepérola.
Parece podermos considerar três tipos de peças de laca do Guzarate. As produzidas para o mercado local, as destinadas ao mercado de exportação islâmico, e as de encomenda europeia.
Pelo contexto histórico é de supor que as exportações para o mundo islâmico, sejam anteriores ao comércio orientado para os países europeus. É uma realidade, no entanto, que alguns objectos sobretudo cofres com óbvia tipologia e desenho islâmicos ingressaram em colecções reais europeias no sec, XVI e seguinte, exactamente pelo seu valor exótico e beleza e num espírito de inventariação promovido pelo fascínio pelas novidades de um mundo que estava então a ser “descoberto”.
O escritório da Jorge Welsh revela um desenho geométrico e vegetalista estilizado que embora de feição islâmica é típico das artes decorativas do Guzarate, um vocabulário decorativo que incorpora árvores estilizadas com copa em forma de coração invertido, palmeiras com rosáceas, etc, característico dos Sultanatos do Norte da Índia do período pré-Mogol.
Quando os Portugueses dominaram o comércio do Índico e se apoderaram das rotas comerciais árabes e Otomanas e que os interesses comerciais europeus foram ganhando força, sobretudo a partir de 1601 (com a abertura das feitorias inglesa e holandesa em Surat) a produção de mobiliário de exportação adquiriu contornos mais adequados ao gosto europeu de então.
No seu Itinerário, publicado em 1596, o holandês Linschoten menciona que em Sind, junto da embocadura do rio Indo “ fazem todo o género de escrivaninhas, armários, malinhas, caixinhas, bastões e mil outras bugigangas e curiosidades semelhantes, todas embutidas e lavradas com madrepérola, sendo tudo levado para Goa e para Cochim, na altura em que os navios portugueses ali estão para carregar. O francês François Pyrard de Laval observador atento do que viu na Índia entre 1601 e 1611, descrevendo o reino de Cambaia (Guzarate) conta: “Ils ont encore des cabinets à la façon d’Allemagne, à pièces raportées de nacre de perle, ivoire, or, argent, pierreries, le tout fait proprement.” Referia-se aos pequenos escritórios de tampo de abater com uma gaveta central maior rodeada de pequenas gavetas decorados com embutidos de madeiras diversas produzidos pelas oficinas de Ausburgo e Nuremberga desde o sec. XVI, muito populares em toda a Europa.
O Escritório de embutidos de madrepérola em laca da Jorge Welsh é possivelmente único e de grande relevância, ilustrando a transição de modelos islâmicos para europeus na aurora formativa de um mercado de exportação de mobiliário exótico da Índia para a Europa que iria manter o seu fulgor até pelo, menos ao século XVIII. A tipologia deste móvel corresponde plenamente aos modelos em voga na Europa de então. Que tenhamos notícia e apesar das diversas menções contemporâneas a escritórios de madrepérola apenas encontramos publicado um outro escritório de embutidos de madrepérola em laca do Guzarate (1), este com uma decoração já muito mais próxima dos numerosos escritórios afins em que o marfim substitui a madrepérola, mais um passo na aproximação ao gosto e técnica europeus.
O escritório da Jorge Welsh embora já não cultive a sinuosidade de formas quase caligráficas de embutidos de alguns dos exemplares destinados ao mundo islâmico conserva ainda os padrões decorativos dessa era com elementos tais como a árvore com copa em forma de coração invertido e a palmeira estilizada com rosáceas.Todo o interior do móvel está decorado com um trabalho lacado a vermelho de tipo vegetalista, Fig 2, típico das oficinas do Guzarate dessa época.
A tipologia deste móvel corresponde à dos “à moda dos da Alemanha”que se tornará modelo corrente tanto na produção indo-portuguesa como na namban, mas que à época da sua feitura no Guzarate seria uma “novidade”.As pegas laterais de ferro são elementares e de um estilo ainda por definir, reforçando o carácter pioneiro deste móvel.
(1) Digby - The Mother of Pearl Overlaid Furniture of Gujarat, the holdings of the Victoria and Albert Museum.em: Facets of Indian Art , Victoria and Albert Museum London, 1986, fig. 9 e 10.